“Os estudos indicam que”…Breve ensaio sobre a pirâmide da evidência e a invenção da cadeira
Devia ter escrito este artigo antes. Mas pronto, nunca é tarde. Este artigo servirá como “campo base” para poder explicar certas ideias ao falar de suplementos alimentares.
Ou seja: neste artigo exploramos a anatomia da evidência científica. Com base em quê eu ou outras pessoas afirmamos que o suplemento X ou Y é útil ou inútil para os fins pretendidos.
E é muito importante que tu, que me lês neste momento, percebas determinados conceitos de base.
Porque está na hora que deixes de acreditar em mim, nas outras nutricionistas ou médicas que segues no Instagram, nas health influencers que não devias seguir, e na prima da vizinha do terceiro andar que tomou X e se sentiu tão bem.
Está na hora que uses o teu próprio conhecimento, que o temperes com o teu sentido crítico, que o balizes com a tua intuição, os teus valores, e a tua carteira, e tomes decisões sabendo que a Verdade Absoluta não é conhecível, e que ninguém a possui.
A ciência é um paradigma em constante movimento, baseado em sistemas arbitrários de interpretação da realidade, e pretende dar respostas não fechadas nem definitivas às questões que lhe são colocadas.
Ora bem, quando em tema de suplementos, alguém diz ou escreve algo como “Estudos recentes afirmam que”…Ou “Foi publicado um estudo que demonstrou que”…Os tais estudos podem ser tanto milhares de publicações acumuladas em décadas de solidíssima evidência repetidamente confirmada, como um miserável estudo onde a população em estudo foram 13 ratazanas, financiado pelo laboratório que produz o suplemento em questão, e publicado no International Journal of AI-Driven Abstracts and Creative Statistics.
Ou um artigo de opinião, publicado numa revista médica reconhecida, mas sempre um artigo de opinião. Ou ainda, simplesmente ser uma expressão linguistica vazia, usada apenas para dar um tom profissional a uma opinião pessoal qualquer.
Ou qualquer outra situação intermédia, que é muito comum, embora o grosso dos casos tenda a cair no último extremo do espectro (na prática, tangas).
Poderia existir…
Portanto, aqui quero dar-te algumas ferramentas para que possas aprofundar aquilo que te interessa quando alguém publica no Instagram ou te sugere que tomes o suplemento X ou Y, ou quando já o estás a tomar e queres perceber se vale e pena continuar, ou se estás a pensar comprá-lo porque ouviste a funcionária duma ervanária que o vendia a uma cliente.
No campo biomédico existe o conceito de pirâmide da evidência.
Esta pirâmide é aplicável tanto a medicamentos, como a suplementos, fitoterapia e outras intervenções.
A pirâmide da evidência. Fonte: eu (obrigada, Canva!)
O que é a pirâmide da evidência científica?
A pirâmide da evidência organiza os tipos de estudos científicos do menos fiável (base) ao mais fiável (topo) para responder à pergunta:
“Este tratamento funciona mesmo?”
Quanto mais acima na pirâmide, menor o risco de erro, viés ou coincidência.
A pirâmide da evidência (do topo para a base)
1. Meta-análises e Revisões Sistemáticas
Estas representam o nível mais alto da evidência
A revisão sistemática analisa todos os estudos relevantes sobre uma pergunta específica.
Usa critérios rigorosos e transparentes (o que entra, o que fica de fora).
A meta-análise é uma revisão sistemática que combina estatisticamente os resultados de vários estudos. Isto aumenta o poder estatístico e a precisão das conclusões. Por exemplo:
“Análise de todos os ensaios clínicos sobre a curcumina na dor articular.”
Ao fazer esta análise, a meta-análise considera o conjunto da evidência, não um estudo isolado, reduz o impacto de resultados “fora da curva” estatística.
Mas qual é a limitação?
Se os estudos incluídos forem fracos, a conclusão também será fraca (“garbage in, garbage out”). Por exemplo, se olharmos o conjunto de estudos publicados sobre colagénio, teremos precisamente este efeito, como veremos no artigo correspondente. Ou seja, quando há uma grande massa de artigos baseados em estudos financiados pelos laboratórios que comercializam o produto, é claro que temos que saber filtrar essa quantidade de informação e não olhar apenas para as revisões sistemáticas. Temos que saber que os poucos estudos independentes sobre o tema são muito menos entusiastas dos resultados. Faz sentido, certo?
2. Ensaios Clínicos Randomizados Controlados (ECR / RCT)
Este são o “padrão de ouro” para avaliar eficácia.
São estudos experimentais onde:
Os participantes são randomizados (distribuídos ao acaso)
Há um grupo de intervenção e um grupo controlo
Usam placebo num dos grupos
Idealmente são em duplo-cego.
Que significa cada ponto?
A randomização evita que os grupos sejam diferentes à partida. Se por exemplo para avaliar a eficácia da curcuma, estudo dois grupos de pessoas, e num dos grupos há um maior número de pessoas doentes, ou fumadores, ou desportistas, ou qualquer outra variável, isto já gera um desequilíbrio no estudo.
Placebo: permite separar o efeito real do efeito psicológico. Para demonstrar ser eficaz, um suplemento/medicamento tem que demonstrar ter um efeito superior ao placebo. Parece óbvio mas não é. No início da carreira aceitei muitos convites de laboratórios que organizam palestras para aliciar os profissionais a prescrever os seus suplementos. Muitas vezes nas entusiásticas apresentações de resultados extraordinários em estudos clínicos, os oradores “esqueciam” de contrastar tais resultados com o placebo. Embaraçoso…Já não aceito convites, diga-se de passagem.
Duplo-cego: nem o participante nem o investigador sabem quem recebe o quê. E isto é básico no caso dos pacientes: imagina que te dizem, “Ora, toma lá este comprimidinho de açúcar e vamos ver se te faz tão bem como a cúrcuma”; é óbvio que não vai acontecer. Mas é importante também que quem distribui o comprimido não saiba se é placebo ou não. Porque inconscientemente pode estar a dar sinais ao paciente.
Grupo de controlo: como disse, tem que haver uma comparação justa. Não posso comparar resultados se não tenho um grupo “igual” que não toma a tal substância, para comparar por exemplo o efeito sobre dor articular.
Exemplo:
Um estudo que avalia “Extrato de ginkgo vs placebo em memória, durante 12 semanas.”
Se seguir os critérios acima indicados, terá muito boa qualidade para inferir causa-efeito
No entanto, estes estudos podem ser caros, curtos no tempo e não refletir totalmente o “mundo real”.
3. Estudos Observacionais Analíticos
Estudos de Coorte
Acompanham grupos ao longo do tempo, comparando quem é exposto vs não exposto a uma determinada substância.
Exemplo:
“Pessoas que tomam suplementos de ómega-3 vs quem não toma, seguidas por 10 anos”.
Estes estudos servem para estudar efeitos a longo prazo, mas não provam causalidade com tanta segurança.
Estudos Caso-Controlo
Começam pelo desfecho (doença) e olham para trás, comparando doentes vs não doentes.
Exemplo:
Pessoas com cancro vs sem cancro e uso prévio de um medicamento.
Claramente, estes estudos são mais suscetíveis a erro de memória e viés.
Estudos Transversais
“Fotografiam” num único momento, avaliando associações, não causalidade
Exemplo:
Quem toma suplementos X tem menos sintomas Y?
Servem portanto para gerar hipóteses, mas não dizem o que veio primeiro: a doença ou o uso do suplemento/medicamento?
4. Estudos Pré-clínicos
Lembras-te das tais 13 ratazanas (eu sei que não se chamam assim, mas deixa-me usar esta palavra tão linda)? Isso mesmo. A base da pirâmide. Mas até antes das ratazanas, há estudos in vitro (ou seja, em células, em tubos de ensaio ou placas de Petri). Muito citados por exemplo, para falar das propriedades anti-microbianas dos óleos essenciais. Mas uma coisa é matar bactérias numa placa de Petri, outra coisa é matar bactérias patogénicas no corpo humano.
E depois , claro, in vivo, ou seja em animais.
Exemplo:
“Extrato vegetal XYZ reduziu a inflamação em ratos.”
Claro que são bases para continuar a investigação em humanos, mas não é preciso te recordar que não somos exatamente iguais, pois não?
5. Opinião de especialistas, relatos de casos
Claramente, o nível mais baixo de evidência. Baseia-se na experiência clínica individual, e/ou em casos isolados. Também cabe aqui a tradição (muito comum em fitoterapia: “uso tradicional há séculos”).
Pode ser útil como ponto de partida, mas não prova eficácia. NO ENTANTO, é algo que todos nós tomamos em consideração e é um dos muitos critérios a ter em conta. Todos nós que usamos e indicamos suplementos e fitoterapia , não nos baseamos neste degrau da evidência mas o temos em conta. Porque também não podemos cair no delírio do “se não existir evidência com ensaios clínicos randomizados com placebo em duplo cego, não serve para nada”.
O próprio British Medical Journal, em 2003, publicou o seguinte artigo para satirizar a racionalidade irracional que determinadas atitudes radicais podem atingir.
Segue a minha tradução do resumo, mas podes ler o artigo integral aqui, é delicioso.
Realmente, não há evidência alguma que justifique a recomendação de usar o paraquedas quando te lanças de um avião.
“Uso de paraquedas para prevenir a morte e traumatismos graves relacionados com desafios gravitacionais: revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados.
Abstract
Objetivos
Determinar se os paraquedas são eficazes na prevenção de morte e traumatismos graves relacionados com desafios gravitacionais.
Desenho do estudo
Revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados.
Fontes de dados
Bases de dados Medline, Web of Science, Embase e Cochrane Library; sites apropriados da internet e listas de referências.
Seleção dos estudos
Estudos que demonstrassem os efeitos da utilização de um paraquedas durante a queda livre.
Principal medida de desfecho
Morte ou traumatismo grave, definido como uma pontuação de gravidade da lesão (Injury Severity Score) superior a 15.
Resultados
Não foi possível identificar quaisquer ensaios clínicos randomizados sobre a intervenção com paraquedas.
Conclusões
Tal como acontece com muitas intervenções destinadas à prevenção de doenças, a eficácia dos paraquedas não foi submetida a uma avaliação rigorosa através de ensaios clínicos randomizados. Os defensores da medicina baseada na evidência têm criticado a adoção de intervenções avaliadas apenas com dados observacionais. Consideramos que todos poderiam beneficiar se os protagonistas mais radicais da medicina baseada na evidência organizassem e participassem num ensaio duplo-cego, randomizado, controlado por placebo e com desenho cruzado sobre o uso do paraquedas”.
Claro que este artigo satírico foi ultra-mega criticado, mas não deixa de ser um ato de coragem e humildade ao mesmo tempo. Um reconhecimento dos limites da evidência baseada só e exclusivamente no “golden standard”.
Muito bem. Agora que sabes o que é a pirâmide da evidência, da próxima vez que alguém, eu incluída, te der a sua opinião sobre um suplemento, sabes que podes fazer pesquisas com um pouco mais de autonomia.
Uma palavra sobre a IA
Outra ferramenta muito usada por quem tem preguiça de peneirar o PubMed, é a inteligência artificial. Ora, deixa que te diga: não te deixes substituir o cérebro por ela. De momento, não está minimamente à altura. Serve para muitas coisas, mesmo. É ótima em muitos aspetos. Pode dar inputs iniciais, ajudar-te a orientar a pesquisa. Mas tende a não balizar a qualidade da evidência, e a ser antes uma porta-voz do marketing dos laboratórios.
Como dizia um famoso infectologista argentino, Francisco Maglio:
“El mayor avance de la medicina es la silla”
(A maior invenção na história da Medicina, foi a cadeira).
Sim, eu também acho que, apesar dos grandes avances tecnológicos, a cadeira continua a ser a maior invenção científica de sempre.
A cadeira, esta grande desconhecida
Porque quando tens um problema de saúde, o que tu queres é ser vista por alguém que tenha o hábito de apoiar o rabo sobre a cadeira, os cotovelos sobre a mesa…e estudar!
E as cadeiras também servem para criar um espaço e um tempo de conversa, de escuta, de atenção.
“O que se passa contigo? Como te posso ajudar?”.
Com amor,
